31 de outubro de 2010

Músicas para terminar o dia - ou os anos

30 de outubro de 2010

A ler, I

A antiga teoria da moderna literatura

Em «As Revoltas Modernistas na Literatura», Otto Maria Carpeaux referenda a tese consensual de que historicamente o século XX iniciou-se a partir de 1914. Porém, o mesmo entendimento certamente não poderia ser aplicado à literatura. Se por um lado em felizes momentos ela soube antecipar as nuanças sociais e psicológicas que estavam apenas em estágio embrionário (como constata-se na obra de Hermann Hesse), por outro a literatura acabou por desestabilizar toda uma tradição que já havia se iniciado anos antes, que é a do encontro de um suposto ponto de equilíbrio espiritual para Europa dos anos de 1900.

Nesse contexto de modificações estruturais, escritores como Gabriele D’Annunzio, Stefan George, Rilke, Péguy e Alexander Blok, fazem raiar de algumas de suas obras algo de profetismo desesperançado. Mesmo a literatura dos anos 1914—1915, onde seria de se esperar acentuado viés memorialista de experiências bélicas, somente foi aparecer na forma como conhecemos hoje através dos escritos de Henri Barbusse, Wilfred Owen e Rupert Brooke, a partir dos anos de 1928, uma década após o armistício.

Por outro lado, existiu o otimismo vigoroso de Apolinaire — «Je sui ivre d'avoir bu tout l'univers» —, que somente poderia encontrar ressonância legítima noutras atmosferas. Nesse aspecto, a literatura modernista procurou justamente crescer com autonomia sobre as fraturas de uma Europa doente, contrariada com as conseqüências do avanço e radicalização dos seus próprios fundamentos (para alguns seria o imperialismo).

Como escreveu Carpeaux, «a própria função do modernismo na história literária consiste no seu afastamento da realidade: da realidade de 1910 e 1914, que não conseguiu sobreviver» (p. 26). André Gide, Hermann Hesse, os Pré-Expressionistas alemães, os futurismos alemão e italiano, os boêmios de Munique (Thomas Mann, Henrich Mann, Frank Wedekind, o ilustrador Thomas Theodor Heine e toda a revista satírica Simplicissimus) e os vários outros ismos, reconhecem não apenas esse estado de esfacelamento identitário.

Atestam, também, o fim de um ciclo no qual os movimentos artísticos perderam suas autonomias frente à crueza da realidade social. O modernismo, então, constituir-se-ia pela lei da novidade. E, sendo contrário ao cânone, haveria do próprio modernismo buscar seus referenciais. Porém, essa pretensão mostrou-se — se bem que não inteiramente — falsa.

Ezra Pound, por exemplo, valeu-se da poética provençal e chinesa em muitos dos aspectos programáticos do Imagismo, tal como «não usar palavra nenhuma que não contribua para a exposição», que muito lembra a poesia de Li Bai. Esse nascer de «fora» (a expressão é de Carpeaux) fez com que a crítica conservadora se insurgisse contra a tendência moderna. Esqueceu ela, porém, que o estabelecimento de cada um dos movimentos estéticos que já existiram sempre se afirmaram pela negação — essa que é, por sinal, a lei básica do movimento dialético.

A geografia da poética

O homem faz parte do continente, da terra. Do laço que o aglutina em meio à gente, como que por alguma inclinação derivada da própria vida, encerra-se não apenas seu ser, mas todo triunfo da existência enquanto avanço para algum sopro terno que sobrevive na nostalgia das suas emoções mais desconhecidas. Pois sim, o caminho do inóspito, do não-trilhado, com sacrifício muitas vezes dessa união identitária, entende-se por quem dela compartilha. As noites ao relento, o sabor da areia entre os dentes, a umidade a devorar-lhe as roupas — tudo serve, toda valia é quista. A circunstância concreta onde essas provações crescem é o solo pantanoso da experiência, vívido entre o céu da memória e os ventos enfeitiçados da sincera camaradagem.

Composições do «Grupo dos Cinco»

É sabido que, musicalmente, até o advento do romantismo, a Rússia vivia fraturada entre, de um lado, a cultura musical da corte, europeizada em moldes franceses, e, no outro extremo, o povo imerso na atmosfera advinda primordialmente dos cantos religiosos e populares. Um famoso publicista do século XX, citado por Jean e Brigitte Massin na monumental História da Música Ocidental, escreveu: «conheci inúmeros príncipes que não saberiam escrever duas linhas em russo». Obviamente que ecos podiam ser ouvidos na ópera.

Até então, todas as óperas russas eram cópias do que na Itália e França eram produzidas. Cimarosa, Paisello e Boieldieu eram os modelos. Nas bibliotecas particulares da nobreza afloravam livros de J.J. Rousseau, Montesquieu e Voltaire. Somente com Puchkin e Gogol esse estado começa a ser revertido. Na música, o grande responsável pelo turning point foi Glinka. A partir dele começaram a ser tecidas algumas manifestações preocupadas com o resgate da identidade nacional: criaram-se conservatórios, o folclore passa a ser valorado na devida grandeza, atenuam-se as influências estrangeiras e o ritmo sofre notáveis transformações.

Glinka compôs, ainda, a primeira ópera russa: «A vida pelo Czar». Em pouco tempo a literatura renasce sem as pesadas influências estrangeiras. É o tempo de Dostoievski, Tolstoi, Turgueniev. Em pouco tempo é extinta a detestável instituição conhecida como servidão. Na capital, no ano de 1863, um grupo de treze alunos dissidentes da Escola de Belas Artes criou a Sociedade de Exposições Ambulantes, tendo por objetivo aproximar as artes plásticas junto ao povo.

É dentro desse contexto de otimismo e nacionalismo que surge o Grupo dos Cinco. Podendo ser traduzido como Poderoso Monte, ele foi integrado por Mili Balakirev, César Cui, Modest Mussorgsky, Nicolai Rimsky-Korsakov e Aleksander Borodin. Várias foram as obras composta nesse período que ainda fazem parte dos programas das grandes orquestras.

Na suíte «Quadros de Uma Exposição», talvez a mais famosa composição do Grupo, pode-se notar a rica liberdade estética que materializa-se na fusão entre o intérprete e o teclado, «tratado antes como uma orquestra do que como um instrumento de virtuosismo». Anos depois o músico francês Maurice Ravel haveria de transliterar Quadros de Uma Exposição para orquestra. Porém, ali ouve-se Ravel, e não Mossorgsky. Somente Debussy e Stravinsky conseguiram, anos mais tarde, conferir semelhante autenticidade às inovações radicais trazidas pelo músico russo.

Abaixo estão publicadas as obras que representam algumas das facetas do zeitgeist do Grupo dos Cinco: «Uma noite no Monte Calvo» de Modest Mussorgsky, «Preludio Op.64» de Cesar Cui, «Islamey» de Balakirev, «Quarteto de Cordas nº 2 em ré maior» de Borodin, e «Concerto para piano em dó maior» de Rimsk-Korsakov.









Os pequenos clássicos

Clássico é o que desnuda-nos o corpo, essa matéria pouco dada a ângulos e arestas. Sabe-se lá o que o revela, o que o divide entre coisas de maiores importâncias. Quais desassossegos remoemos para entender que esse malquerer se trata justamente de falsas virtudes? O que segue-nos à sombra, com indiferença? Talvez seja, afinal, a alma, esse corpo estranho que vincula-nos alguma sorte de inquietação, onde mesmo estando sozinhos por ela somos fielmente seguidos. O clássico talvez seja o magneto que aporta-nos ao desejo inconsciente de perecimento.

28 de outubro de 2010

O Mundo está do lado de fora

Os dias oprimem-me. Tempo, o velho tempo mais uma vez. Músicas, parques e gentes estão para ser conhecidos, vividos, incorporados. Nunca ignorados sobre a mesa, esquecidos numa falsa memória de negligência. E agora, quando tudo de humano parecia refutado, ele chega para conceder a apreciação das necessidades banais da vida. Como são belos esses mistérios do mundo. Sempre tão perenes que parecem inéditos a cada fatalidade, a cada instante de contingência e observação.

26 de outubro de 2010

O pensamento de William Morris, Pt. I


Das fontes mais importantes para a formação do pensamento socialista inglês no sec. XIX encontramos o movimento Romântico. E aí delimita-se a importância de William Morris. Basicamente, a tendência do romantismo articulava-se, de um lado, entre oscilações escapistas — que poderíamos chamar de medievalismo nostálgico, a-histórico, como no caso de Walter Scott —, e, de outro, a rebeliões que redundavam apenas na insurgência impotente do Eu. Há exceções, obviamente, tais como Percey Shelley.

Todavia, William Morris soube superar com suficiência esse tour de force, partindo da articulação de autores cuja crítica ao capitalismo industrial superava as tendências conservadoras oriundas do individualismo burguês da tradição liberal, tais como William Blake, Cobbett e Carlyle. Nesse aspecto a importância de John Ruskin sobre o pensamento de William Morris pode ser sentida com maior profundidade e extensão.

Há no socialismo de William Morris muito do autor de «Stones of Venice»: não somente a indignação moral e a inteligência de perceber a exploração — econômica e moral — como fruto imediato do capitalismo a expensas da dignidade humana, mas ser capaz de imaginar um projeto social definido historicamente, qual seja, a sociedade socialista — sociedade essa exposta em News From Nowhere.

P.S. — Esse é o primeiro texto de uma série de posts dedicados a William Morris.

25 de outubro de 2010

«Balada para violino e orquestra», de C. Porumbescu

Otto Maria Carpeaux, no seu Livro de Ouro da História da Música, afirma-nos inexistir um movimento romântico. Para o crítico austríaco existem romantismos. Diferentemente do romantismo literário, onde é possível traçarmos seus limites temporais (v.g., Novalis, Tieck, E.T.A. Hoffmann, Lamartine, Musset, Walter Scott, Shelley, Lermontov e Pushkin), o romantismo musical mantém invisíveis algumas de suas fronteiras, ora indo além do que supomos, ora se restringindo em algum lugar anterior aos horizontes criados em nossa fantasia. São românticos, inegavelmente, Wagner, Schubert, Weber e Mussorgsky.

Mas além de qualquer classificação reducionista, o romantismo propiciou que, em cada cultura onde houvesse sua absorção, os matizes culturais e sociológicos nativos preponderassem sobre qualquer programa estético. Assim, há um romantismo brasileiro (Castro Alves, Gonçalves Dias, na literatura; Villa Lobos, se pensarmos no aspecto nacionalista, e Alberto Nepomuceno, o “criador” do nosso nacionalismo musicista — por exemplo, ele deixou inacabada a ópera A Garatuja, baseada na obra de José de Alencar), um romantismo inglês, ibérico e russo, e outra dezena de romantismos.

No vídeo acima, cuja qualidade sonora é questionável, confesso, podemos ouvir a Balada para violino e orquestra, de Ciprian Porumbescu. Semelhante a outros músicos de influência romântica, tais como o tcheco Bedrich Smetana (confirir «Ma Vlast»), Antonin Dvorak («Danças eslavas») e Rimsky-Korsakov («Scheherazade»), Porumbescu incorpora diversos elementos próprios da sua cultura, conferindo elementos exóticos tão caros à expressão desse fenômeno. Nesse caso, o exotismo é alimentado pelo uso preponderante do violino, instrumento valioso para o ethos da etnia cigana.

«Sinfonia nº 8», de Anton Bruckner

A parte mais importante da obra de Anton Brukner, que são as suas nove sinfonias, data de quando o compositor já alcançou a maturidade, nos idos de 1864. Nesse conjunto incluem-se, ainda, duas sinfonias sem nome: «Sinfonia em fá menor» (1863) e «Sinfonia nº. 0 em fá menor» (1868). Dentro desse sistema é possível identificar três fases: na fase primeira encontramos as sinfonias compostas no ínterim de produção das missas em ré menor, em mi menor e em fá menor; a segunda fase engloba as sinfonias nº. 4 em mi maior (1874), denominada Romântica, a nº 5 em si bemol maior (1879 - 1881), com sua famosa fuga, e nº. 6 em lá maior (1879 - 1881); na terceira fase temos as sinfonias nº. 7 em mi maior (1881 - 1883), a nº. 8 em dó maior (1884 - 1890) e a nº. 9 em ré menor (1887 - 1896).

Essas três últimas sinfonias distanciam-se do segundo grupo pela elevação espiritual — valho-me da expressão de Jean e Brigitte Massin — e vastas dimensões estéticas, como, por exemplo, os variados e imponentes scherzos. A Sinfonia nº. 8, que aqui publicamos a primeira parte do Ato I e o trecho final do Ato IV (o primeiro com a regência de Herbert Karajan e o último com regência de Sergiu Celebidache), foi deixada inacabada.



Dela há duas versões: a de 1885 e a de 1887. Como outras das sinfonias de Bruckner, a Nº. 8 possui diversas versões. Todavia, a variante considerada canônica é a editada por Robert Haas. Nela podemos notar o finale singular, inacabado, com seu anti-clímax característico: interrompido.

24 de outubro de 2010

«Cinco peças para piano op. 23» e «Serenata op. 24»

O «Quarteto para cordas em fá sustenido menor», de 1908, foi a última obra tonal de Schoenberg. A partir daí deu-se início ao período criativo que Pierre Boulez denominou de «estilo atonal livre». Seu novo sistema tonal, o dodecafonismo, que pretendeu substituir o de Bach e Rameau, seguiu seu curso natural rumo à superação do cromatismo wagneriano (que já demonstrava sinais de exaustão) e do atonalismo.

Ao invés das 24 tonalidades do sistema tradicional – 12 maiores e 12 menores –, Schoenberg admite somente uma tonalidade: os 12 sons, onde nenhum deles destaca-se dos demais: todos ocupam a mesma função, não havendo notas musicais maiores ou menores. Todavia, essa liberdade é restrita, assumindo inúmeras regras.

Como ensinou Schoenberg em sua obra Harmonia, o compositor deve basear-se numa série na qual todos os 12 sons são representados, mas um de cada vez. Como ressalta Otto Maria Carpeaux, essas regras compõem-se de uma escolástica. As primeiras obras seriais foram «Cinco peças para piano op. 23» e «Serenata op. 24», ambas publicadas nesse post.

Perceber, com cuidado, como é possível encontrar algumas semelhanças entre Schoenberg e Haydn nessas composições, dentre elas a excepcional densidade de pensamento e a redução, num espaço sonoro e temporal diminutos, de uma vasta multidão de acontecimentos musicais.



Cinco peças para piano op. 23 (1920-1923)



Serenata op. 24 (1920 - 1923)

Polemos

Pensar em desalinho, como se tristes fossem todos os esforços e abdicações, repuxa o manto das diferenças porque ampla a natureza e diminuto o homem. Ali onde casa a perfeição – num encaixe acabado de arranjos espontâneos – vemos leis porque às leis estamos sujeitos. Mas nada há ali que aparente qualquer mando de ordenação que não aquele decorrente da sua própria constituição. No Verbo não havia concordância; apenas uma luta indisponível poderia aparar os contornos dissonantes.

Lá o tempo é senhor, mas para o homem isso nada importa; pensa ele apenas nas diferenças e naquilo que distancia-o da união; isso separa-o da verdadeira natureza – e a justificar tamanha pequeneza de espírito criou ele o justo. Mas aquele confronto é fenômeno inelutável e primordial.

Se ele é inato à feição daquelas relações, o nosso justo se prende ao artificial e passageiro. Para a humanidade civilizada a desconsideração daquele embate é um luxo necessário; e nisso, erroneamente, crer residir sua importância e diferenciação com a natureza que o cerca. Tolice, impossível se afastar: o mundo, afinal, é luta entre opostos.

As nossas posses

Regozija nosso espírito saber que, ao menos num curto período, aproximamo-nos deles, das nossas referências. Mas com a mesma intensidade que esse reconhecimento passa pela nossa percepção e altera nosso ânimo, dele desabita, levando consigo toda aquela satisfação de ser, ao menos por um instante, digno de lembrança para aqueles que ainda virão. Mas as comparações não habitam, por certo, o verdadeiro artista. Mesmo na luta com o passado, ele não suprime - tampouco refreia - o conhecimento que tem do seu gênio.

Sabe ele que grandes vultos existiram. Mas com certeza maior sabe que eles agora alimentam narcisos; e mortos não mais podem produzir. Para materializar a autenticidade da criação do artista presente, antes de querer superar a si ou a outrem, é necessário saber que nada, a não ser a morte incerta, poderá impedir o amadurecer irremediável daquilo que merecerá ser conservado. Ao transcender a individualidade o verdadeiro artista sobreleva a história, convertendo-se imediatamente em passado superado – essa é a sua verdadeira e necessária posse.

Principiologia moral

Perco-me entre ilusões por não saber sonhar, e vivo por não almejar de todo a vida – confundo-me entre buscas e motivações onde desconheço o que lhes apreende com verdade. As posições onde se gozam nunca pelo prazer esperançoso da própria condição ou iluminações que se fazem apenas na transcendência quando aqui resta pó, findam nisso: afastar motivos para desejar e objeções para querer.

Cui bono?

O dogma, como consequência incontornável das doutrinas que se asseguram como sistema, prova ser necessário como requisito à sua existência a intervenção cada vez maior do espírito de gênio, cuja existência, por si só, é corretora dos defeitos que eventualmente da sua doutrina se manifestam. Não há questionar-se tais espécies de ideologias. Das indagações que dali emergem podem ser elas solucionadas pela expressão «cui bono». A quem elas servem?

Ao tratar de tal imperativo assentados nessa orientação, tendo em vista que todas elas aspiram ao controle, veremos que não existem apenas senhores e escravos no mundo dos homens. Há súditos também, que, se não estão plenamente destituídos de sua própria vontade, não a possuem em gozo pleno. Toda tutela – de ordem moral, espiritual ou material – é, em maior ou menor grau, decorrência da dominação consentida. A essa antiga hemiplegia da liberdade significamos com o pomposo nome de «respeito aos mais velhos».

Mensagem à calhar

Pois aqui, neste espaço, alinho-me entre amigos presentes, vivos sobre a mesma terra entre águas de distâncias e latitudes. Mas tudo é pedra por ora, tempo de secas e resguardos. Esforçar-me-ei para cá ficar. A nudez dos contatos e afetos, qual toda companheira, aproxima-se como luz a incendiar a noite. Meu tempo é o do cimento e das formas, o tato sobre o corpo que supera a imaginação.

No Templo de Apolo

A natureza causa-me o crescimento daquilo que poderia chamar de «superação do intelecto». Todavia, ao referir-me a natureza não penso naquele tropos idealizado pelos teóricos românticos. Há, sim, algo de transcendente nos bosques, nos rios, no mar e nos vales. Interessa-me, porém, a percepção de que no universo da suposta irracionalidade não se habitam nenhuma das nossas concepções morais acerca da justiça, do belo e da ordem. Vê-se aí apenas uma irrefreável espontaneidade de tudo quanto aquilo que, diariamente, negamos pertencer às nossas mais profundas intuições. O desejo de superação — aquela atmosfera de permissão e polaridade aos nossos mais intensos impulsos — é o que exalta a teia de acontecimentos que a partir da nossa soberania se constrói. Voltar à natureza é apenas a outra face do conhece-te a ti mesmo.

«Devolve-me os laços»

Estamos sempre a falar sobre livros que nos esperam acolá, superiores numa reclusão compreensível. Carregados de uma fleuma intensa que não se suspende pelas causas de nossas fadigas — tão banais, tão poucas —, cada volume lido e recostado a outro a ele se une, assumindo outra identidade, outra genealogia. Mesmo assim tudo continua a brilhar como se único fosse — o ferro da janela, as molduras nas paredes e as lombadas enfileiradas, uma a uma, como condenados à espera do último fumo, do último tombo.

Os Limites da Percepção

Os tipos legados pela tradição, fortalecidos pelo convívio desconfiado, onde inconscientemente assumem-se como verdadeiras imagens estereotipadas de um relato parcial, mantêm vivo o prazer inventivo das viagens. A geografia da percepção, das sensações vívidas de cada uma das nossas ideias, tem por mapa o rastro ilimitado do futuro. Cada passo faz descortinar no instante o reavaliar de nossa similitude. O erro, o equívoco e a soberba, muito mais do que somos capazes de identificar, compõem e determinam nossa cautela. O arejar do solo pátrio em meio ao contato humano diversificado é o fortalecer da pluralidade, é o internacionalismo da compreensão. As estremaduras das fronteiras são contra o espírito da paz perpétua.

23 de outubro de 2010

O bom e mau universais

Não há qualquer ato mau em si mesmo. O único ato considerado universalmente mau é o ato de desobediência. A discórdia, a rebelião, a queda, somente existem quando considerados dentro de um sistema que lhes dê correspondência. Para um ato digno há outro carregado de reprovação. A hegemonia do pensamento, a imposição de uma natureza imutável às circunstâncias, traz em si o fundamento mais substancial da nossa ética: bom é tudo aquilo que mantém a ordem, o status. Mal tudo aquilo que perverte as normas.

Nesse espectro a rebeldia converte-se em elemento de desagregação. Por outro lado, a aceitação ao existente, o obscurantismo e paz, são bons por reproduzirem e afirmarem a coerção e poder dominante: a dissidência, antes de ser causa de progresso, é motivo de fratura ao simbolismo utilizado por aqueles que do Poder mantém seus privilégios. Bom, afinal, é tudo o que silencia.